A Carta da Indústria debate nesta entrevista o perfil da pauta exportadora brasileira e os caminhos para agregar mais valor aos bens nacionais, inclusive aos produtos manufaturados intensivos em recursos naturais. Lia Valls, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e pesquisadora associada do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV), onde é relatora do Indicador de Comércio Exterior (Icomex), cita os potenciais do país, a importância dos investimentos para descobrir nichos de mercado para as manufaturas e os efeitos da inexistência hoje de separação dos setores. “Os serviços estão muito associados à indústria atualmente”, afirma ela.
Carta da Indústria (CI): Qual a sua avaliação sobre a preponderância das commodities na pauta exportadora brasileira?
Lia Valls: As commodities ganharam mais espaço, principalmente a partir de meados dos anos 2000, na medida em que a China era o grande motor do crescimento da economia mundial, estando em um processo de urbanização e criação de infraestrutura. E o Brasil tem uma pauta nesse campo muito diversificada, com soja, minério de ferro, petróleo, entre outros. Isso levou a um aumento da participação das commodities na pauta de exportação. Por outro lado, houve uma queda na produtividade do setor industrial no Brasil, e competitividade também tem a ver com esse aspecto, então perdemos um pouco o espaço. A China, por sua vez, continua demandando e, agora, com a pandemia, em 2020, foi praticamente a única grande economia que cresceu e ainda fez novamente vários planos de infraestrutura que levam ao aumento da participação das commodities na pauta brasileira.
CI: A concentração das commodities na pauta chegou a 67% nos últimos 12 meses (até abril) e era de 34,5% em 2000, segundo o Icomex. Essa ascensão tende a se manter?
Lia Valls: Sim, porque houve uma mudança – carregada pela China – na estrutura de demanda do mundo. Se o Brasil estivesse dentro das cadeias de valor ou se fosse competitivo em manufatura, estaria exportando bens para a China, como é o caso dos alemães. No nosso caso, a produtividade agrícola brasileira é muito alta, temos uma vantagem comparativa muito grande nessa área. É mais ou menos inevitável, não vai deixar de aproveitar.
CI: Como exportar mais valor adicionado?
Lia Valls: Mesmo para agregar mais valor aos produtos intensivos em recursos naturais é preciso investir. Tem que descobrir nichos de mercado, como de carnes processadas, que estamos começando a exportar mais agora. O mercado chinês, antes, não tinha muito esse tipo de demanda, mas atualmente está aumentando. Também devemos fazer parcerias e cooperação com a China para abrir mais mercado ao produto brasileiro. O mundo tem uma concorrência muito maior hoje. Quando pesquisamos as cadeias de valor, quem está em melhor posição é quem faz pesquisa e desenvolvimento (P&D), porque comanda a cadeia toda.
CI: Qual a sua avaliação sobre a concentração de produtos exportados pela indústria de transformação intensivos em recursos naturais?
Lia Valls: Mas é aí que está nossa grande vantagem. Exportação tem a ver com competitividade, produtividade, inovação tecnológica etc. Não há mal nenhum em exportar produtos intensivos em recursos naturais, como frutas, que tempos atrás pouco se exportava. Mas pode-se agregar mais valor. Por exemplo, perdemos muito mercado para os calçados chineses nos Estados Unidos. A China deslocou muita exportação brasileira, mas os casos da Melissa e das Havaianas representam nichos de mercado que foram descobertos.
CI: O Brasil poderia adotar políticas para ir além de suas vantagens comparativas em recursos naturais?
Lia Valls: Nós já vamos além, porque, se pensar em agricultura, não havia soja no cerrado, isso se deve à pesquisa. A Embrapa nesse sentido é um exemplo. Da mesma forma, devemos ter pesquisa na área industrial, que nós até temos, entre outras, na parte de prospecção de petróleo em alto mar, e não é só mercadoria, mas serviços. Somos exportadores de software para essa área. Existem alguns exemplos importantes, como nossa tecnologia bancária ultraconceituada, mas precisa haver mais. Há potencial para exportar mais, como serviços médicos e culturais. No mundo, os serviços dominam cada vez mais.
CI: Há relação entre o perfil da pauta exportadora e o peso da indústria no PIB?
Lia Valls: Não necessariamente. É algo comum nos países desenvolvidos ter queda da participação da indústria no PIB e, ao mesmo tempo, aumentar a exportação de manufatura. Mesmo na manufatura, o que se vende são os serviços, os setores não são mais separados. Você compra um Iphone, mas não está comprando um produto, e sim os aplicativos do aparelho. Os serviços estão muito associados à indústria atualmente. Inovação e barateamento dos serviços ajudam a própria indústria, que é a grande demandante desse setor. Além disso, a indústria emprega mais do que o agro; e os serviços, ainda mais. Porém, temos dificuldade de interação entre universidade e empresa, e pesquisa básica logicamente é a universidade que vai fazer. Em alguns países essa interação funciona muito melhor, e partir daí há produtos comercializáveis. Em algumas indústrias brasileiras conseguimos, como a do petróleo com a UFRJ.
CI: Qual sua avaliação sobre o estado do Rio?
Lia Valls: Fala-se muito que a vocação do Rio são os serviços, que precisam ser mais bem explorados, como os de cultura e turismo, além da indústria audiovisual. Podemos tornar o Rio um polo cinematográfico. Esses são serviços modernos, com efeito inclusive para a indústria. O estado não precisa sofrer da maldição dos recursos naturais. Veja a Noruega, tem petróleo, mas diversifica a economia. Entretanto, é difícil conseguir desenvolver conteúdo nacional para toda indústria do petróleo. A Noruega escolheu alguns setores que tinham mais condição, e neles ela investiu bastante para se tornar exportadora da cadeia produtiva petrolífera.
'Falta ao Brasil algo que a China usa muito: planejamento. Exportação não é para o curto prazo. Mesmo commodity precisa de esforço para exportar' - Lia Valls
CI: O que nos falta para adotar essa estratégia?
Lia Valls: Algo que nós não usamos muito e a China usa muito: planejamento. Exportação não é para o curto prazo. Mesmo commodity precisa de esforço para exportar. O problema é que para ganhar dinheiro com a soja, por exemplo, tem que vender toneladas, enquanto, se tivermos produtos de maior valor adicionado, será melhor, ainda mais porque as commodities vivem flutuação dos preços.
CI: Qual seria o efeito da liberalização?
Lia Valls: Um ponto de muita discussão é que reduzir mais a taxa de importação de bens intermediários e de capital teria impacto positivo na indústria, pois baratearia os custos de produção. Mas a liberalização não é uma panaceia. É apenas um dos instrumentos, uma vez que diminuir o custo de produção significa participar das cadeias. Mas não é só isso, é preciso também uma boa gestão, um ambiente institucional positivo, regras estáveis, tudo isso. Nas experiências da Argentina com a liberalização, eles sempre se deram muito mal, porque se não há ambiente propício, acaba sendo pior, e ocorre falência de indústria.
CI: Como avalia a trajetória brasileira?
Lia Valls: Antes de qualquer coisa, o importante para o país é voltar a crescer. Não temos uma base de sustentação do crescimento da economia há tempos. Devemos ainda melhorar muito o perfil do setor de serviços para gerar emprego e ter distribuição de renda melhor, porque nisso retroagimos muito. Se esse crescimento for pautado no aumento da produtividade – mesmo porque se não for, ele não dura –, haverá condições de melhorar o perfil exportador do país. E a indústria é importante geradora de empregos e de serviços, em geral mais sofisticados. Sabemos também que nosso sistema tributário é confuso. Em um ambiente com cada vez mais países concorrendo, essas questões vão pesando. Antes, o Brasil se protegia e contava com o tamanho do mercado consumidor para atrair empresas, mas outros aspectos agora estão pesando mais. Na economia digital, o consumidor é acessado de diversas formas.
CI: O país precisaria de política industrial?
Lia Valls: Não precisa de política industrial, mas o mínimo de organização. O empresariado fala que quer previsibilidade de regras, facilitação para os negócios, uma boa infraestrutura logística e, no caso brasileiro, ainda há a questão da tributação, com muito imposto indireto prejudicando a competitividade. Outro ponto é o marketing; e o governo pode dar apoio nisso. No Chile, o salmão foi um projeto do setor privado, e contou com uma fundação que apostou na importância do marketing. A mesma coisa acontece com o vinho. Os chilenos estão há anos fazendo marketing de vinho e passaram a vender para o mundo inteiro, até para a China. Para uma parte das manufaturas, vende-se a marca. Falamos da marca Brasil desde os anos 1970, mas, por exemplo, não vendemos o suco de laranja do Brasil, exportamos a tonelada do produto. Portanto, mesmo a área de recursos naturais de maior valor adicionado requer investimento. Os países asiáticos ainda estão se urbanizando; e, à medida que isso acontece, aumenta a demanda por proteína. É possível fazer mil produtos a partir da soja. Ou seja, o Brasil tem muito potencial.
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